quinta-feira, 18 de outubro de 2007

Fernando Pessoa (S) – Múltiplos




“Construí-lhes as idades e as vidas”


O que levou F. Pessoa a criar (tantos) heterónimos …?

Os heterónimos seriam a resposta a uma necessidade de expressar a multiplicidade contraditória e dominadora de sentimentos/ideias e ideias/sentimentos, várias subjectividades.
Fernando Pessoa numa carta ao seu amigo Adolfo Casais Monteiro explica essas razões, como foram criadas os seus heterónimos, e chegando mesmo a fazer uma descrição completa das “pessoas” criadas.
Fernando Pessoa refere nessa carta inicialmente que a génese dos heterónimos era devido a uma anormalidade histérico-neurástica do seu psiquismo que facilitava a despersonalização e o “disfarce”.

Conta que Alberto Caeiro surge por “pura e inesperada inspiração, sem saber ou sequer calcular o que iria escrever”, Ricardo Reis “depois de uma deliberação abstracta, que subitamente se concretiza numa ode”, Álvaro de Campos “quando sinto um súbito impulso para escrever e não sei o quê”. “O meu semi-heterónimo Bernardo Soares, aparece sempre que estou cansado ou sonolento, de sorte que tenha um pouco suspensas as qualidades de raciocínio e de inibição; ”.


Deixo-vos um excerto dessa carta…

“Carta a Adolfo Casais Monteiro

Lisboa, 13 de Janeiro de 1935

Passo agora a responder à sua pergunta sobre a génese dos meus heterónimos. Vou ver se consigo responder-lhe completamente.
Começo pela parte psiquiátrica. A origem dos meus heterónimos é o fundo traço de histeria que existe em mim. Não sei se sou simplesmente histérico, se sou, mais propriamente, um histero-neurasténico (…) porque há em mim fenómenos de abulia que a histeria, propriamente dita, não enquadra no registo dos seus sintomas. Seja como for, a origem mental dos meus heterónimos está na minha tendência orgânica e constante para a despersonalização e para a simulação. Estes fenómenos - felizmente para mim e para os outros - mentalizaram-se em mim; quero dizer, não se manifestam na minha vida prática, exterior e de contacto com outros; fazem explosão para dentro e vivo-os eu a sós comigo. (…) Mas sou homem - e nos homens a histeria assume principalmente aspectos mentais; assim tudo acaba em silêncio e poesia…

(…) Começo por aqueles que morreram, e de alguns dos quais já me não lembro - os que jazem perdidos no passado remoto da minha infância quase esquecida.

Desde criança tive a tendência para criar em meu torno um mundo fictício, de me cercar de amigos e conhecidos que nunca existiram. (Não sei, bem entendido, se realmente não existiram, ou se sou eu que não existo. Nestas cousas, como em todas, não devemos ser dogmáticos.) Desde que me conheço como sendo aquilo a que chamo eu, me lembro de precisar mentalmente, em figura, movimentos, carácter e história, várias figuras irreais que eram para mim tão visíveis e minhas como as cousas daquilo a que chamamos, porventura abusivamente, a vida real. Esta tendência, que me vem desde que me lembro de ser um eu, tem-me acompanhado sempre, mudando um pouco o tipo de música com que me encanta, mas não alterando nunca a sua maneira de encantar.

Lembro, assim, o que me parece ter sido o meu primeiro heterónimo, ou, antes, o meu primeiro conhecido inexistente - um certo Chevalier de Pas dos meus seis anos, por quem escrevia cartas dele a mim mesmo, e cuja figura, não inteiramente vaga, ainda conquista aquela parte da minha afeição que confina com a saudade. (…)

Esta tendência para criar em torno de mim um outro mundo, igual a este mas com outra gente, nunca me saiu da imaginação. Teve várias fases, entre as quais esta, sucedida já em maioridade. Ocorria-me um dito de espírito, absolutamente alheio, por um motivo ou outro, a quem eu sou, ou a quem suponho que sou. Dizia-o, imediatamente, espontaneamente, como sendo de certo amigo meu, cujo nome inventava, cuja história acrescentava, e cuja figura - cara, estatura, traje e gesto - imediatamente eu via diante de mim. E assim arranjei, e propaguei, vários amigos e conhecidos que nunca existiram, mas que ainda hoje, a perto de trinta anos de distância, oiço, sinto, vejo. Repito: oiço, sinto, vejo… E tenho saudades deles.

Catarina Alves

12ºE

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